Não-poema

Um poema é mais do que rimas

Foge das métricas, da compreensão da gramática

Não é exato, varia em todos os graus de insanidade

As palavras voam da folha

Cantam, dançam e explodem

Exalam cheiros e sons numa mesma melodia

Mesmo sem estar presas, gritam por liberdade

Elas fogem, voltam, mudam de ordem. Tudo a seu bel prazer

Instalando-se em cada parte da nossa corrente sanguínea

Grudando nos cantos mais obscuros de nossa garganta

Apenas esperando para serem atiradas, berradas numa sala grande

Juntas, livres, perfeitas

Um poema é a forma das palavras

Enquanto fogem, dançam e explodem

Um poema não existe

Isto não é um poema.

Linha do tempo

Volto para casa

Cada passo, um dia

Não posso parar

Olho ao redor

Fotos e vídeos,

Tentativas frustradas de continuar a viver

Eternamente

Eu vejo apenas o passado

Assim como todos antes de mim

Não há alegria, só saudade

Não há nada

Tudo foi

Ou será

Nunca é

Os segundos demoram anos

E as décadas voam

O esquecimento consome tudo

Uma besta voraz no fundo do abismo profundo

Não, não temos ninguém

Gritamos desesperados por atenção

De alguém que também grita

Uma bela sinfonia

Ninguém vai te ouvir

Tarde demais para dizer adeus.

Boneca de pano

Andava por entre as ruínas do que antes fora belo. Pequenos passos, lentos. Não havia porque correr. Também não havia onde ir.

Tropeçando por entre as pedras e a areia a seus pés. Sua mãe a dissera para não se sujar. Mas o vestido leve e branco há muito tornara-se cinza. Também estava sozinha. Apenas ela e a boneca de pano, sua única recordação do antes.

Encontrou um pequeno lugar no meio dos destroços de um prédio. Dormiu. A boneca sempre agarrada a ela. Não era bonita, porém carregava a memória de sua geração. Ambas o faziam. Mesmo no intenso escuro que agora se propagava, aquela luz futura ainda existia.

O sol não nasceu. De novo. Sem vento. Tudo parado. Passou pelos mesmo túneis do dia anterior. Sujou-se um pouco mais. A boneca não. Sempre impecável. Chegou ao poço. Cheio de lama ao redor.

Trouxe o balde consigo. Jogou-o de volta para dentro. Pouca água. Suficiente. Girou a manivela enferrujada. O vento soprou, pela primeira vez. A boneca abriu os braços. Voava para dentro do poço. Logo em seguida, a menina. Sempre juntas. Agarradas uma a outra. No poço úmido e escuro, a luz se apagou.

Silent Scream

Não há palavras

Nem vozes ou pessoas.

Somente estas amarras apertadas em torno de meus pulsos

Fico parada

Sem saída além do abismo a minha frente

Sou atraída cada vez mais por aquela imensidão aterrorizante

De onde não se pode fugir

Sei que pularei, hora ou outra

Todos pulam

Alguns conseguem dormir, e deixam de ver o temível e sereno buraco

Mas ainda assim caem

O despertar, tão sonhado por alguns, é apenas real

Não há eufemismos, nem pequenas mentiras

É uma desesperante tortura

Que te deixa louco

Seu corpo não aguenta o peso

E o silêncio diz para pular

Ninguém é, apenas existe

Uma pilha nova não fará falta

Há milhares de outras celas ao lado

Nem um som

Coloco palavras no chão, quase escondidas sob o Medo

Esse é meu grito

Alguém o dia o ouvirá

Perdido num chão sujo, de uma cela pequena

Um último grito silencioso.

Silêncio

Não havia luz, estava tudo escuro. “É durante a noite que as coisas acontecem”, lembrava-se de ter ouvido aquela frase, mas ainda assim, nada acontecia. Às vezes pensava ouvir gritos, talvez os seus próprios. Não se lembrava da última vez que gritara, aquilo era contra o código de moral do minúsculo apartamento em que vivia. Algumas paredes cinza a cercava, porém no escuro era quase impossível vê-las. Ainda assim, sentia-as, como se ficassem cada vez menor, e a espremessem.

Fazia muito tempo desde que ficara sozinha e sem nada para fazer. Vivia para o trabalho, um pequeno cargo em uma empresa qualquer. Dizia que não era nada mal para alguém que tinha acabado de entrar no mercado de trabalho, mas realmente odiava tudo aquilo. O chefe, o serviço, as recepcionistas fazendo fofoca sobre alguém sem importância. Tudo. Sentia-se sufocada com aquele ar pesado e os milhares de formulários inúteis que via todo dia. A única razão de continuar era para manter seu american way of life. Seu apartamento, seu celular novo, sua televisão.

Quando não estava trabalhando, fugia daquilo vendo horas de televisão e ouvindo as músicas que passavam nas rádios.Quase sempre deixava de prestar atenção àquilo tudo, mas ainda os deixava ligados. O silêncio a incomodava. Silêncio aquele que agora a cercava por todos os lados.

Torcia para que os gritos que pensava ouvir continuassem, mais e mais. Arranhava-se. Rangia os dentes numa mísera tentativa de acabar com os pensamentos sobre si. Sabia que eles eram verdadeiros. Odiava profundamente o instante em que o síndico tinha vindo avisá-la sobre a falta de luz. Apenas duas horas, havia dito. Tempo suficiente para perceber que odiava mais a si mesma do que ao próprio síndico, do que qualquer um que já havia conhecido.

Lembrava-se de sua infância, quando havia prometido não se vender para as terríveis companhias que faziam de seus trabalhadores verdadeiros escravos. Bom, agora mentia para si mesma que era necessário vender-se um pouco para depois se ver livre. Sabia que isso nunca aconteceria. Tinha entrado no mercado, e o máximo que poderia fazer era trocar de dono. O medo de ser a responsável por todas as suas ações a impedia de ser livre. Assim como todos que diziam que aquilo era loucura, e que seu destino seria tão horrível quanto o de vilões de contos de fadas.

O escuro e o silêncio pareciam aumentar. O desespero crescia cada vez mais, juntamente com os segundos no relógio. Sem som. Olhou para as horas. Mais uma hora. Não aguentava mais aquilo, a vergonha de si mesma, o sentimento de ócio, a falta de um barulho qualquer. Nem as batidas do seu coração faziam algum som. Talvez não existissem mais. Há muito tempo que não as ouvia. De repente aquilo se tornou demais para ela. Foi à cozinha, pegou pratos e copos. Todos ao chão. Jogou a televisão também. Os celulares. Tudo. A cada pedaço de vidro se estraçalhando no chão se sentia um pouco melhor. Havia som. Uma sinfonia de destroços ao seu redor. Cantava e dançava no ritmo dos cacos. Cortava-se às vezes, mas aquilo só a fazia mais feliz. O tempo agora era belo, passava e corria. A luz voltou. Ela continuou ali. Ensanguentada no meio da pilha de destroços do que construíra na sua vida. Finalmente humana. Levemente, ouvia de novo as batidas do seu coração.

Teatralidade

Quem nunca fingiu ser outra pessoa? Ou quis imitar um forma de agir, seja por diversão ou para se sair melhor em um momento? O ser humano é teatral por natureza, desde o primeiro choro forçado para conseguir o que queria, ainda bebê. Atuar é necessário para conseguir viver bem, e o improviso é a base da vida.

Nossa vida se resume a uma composição de cenários com atores que se conhecem na hora e trocam a todo instante de lugar com a plateia. As peças vão se alternando e passamos a conhecer vários gêneros e situações estranhas que não conseguiríamos encarar sem teatralidade. Um ator que nunca muda não consegue acompanhar as mudanças bruscas de tema que continuam a acontecer. Para continuar, ele precisa atuar. Parafraseando Darwin, ou você se adapta, ou morre.

Mesmo que nos digam para sempre sermos nós mesmos e nunca mudarmos, milhares de vezes, esses conselhos continuam a ser horríveis. Não que você precise “perder a si mesmo”, mas tem horas em que a atuação não pode ser deixada de lado, assim como quando você não diz à sua chefe que ela está gorda (por mais que esteja) para continuar tendo emprego.

A arte de mentir e, principalmente, de não ser descoberto, também depende infinitamente de atuação. Uma palavra usada de forma errada, ou uma expressão, podem fazer tudo desandar. Todos amamos segredos alheios, então é melhor ser bom nisso.

E então, após entrarmos nesse palco, passando por várias peças improvisadas e figurinos mal desenhados, as luzes vão se acabando e os personagens vão sumindo. Seu teatro acabou. O que nos resta a fazer é torcer pelo final feliz e por aplausos da plateia.

Jornal das Oito

Boa noite

 

Sofrimento,

Morte,

Angústia,

Choro,

Polícia,

Violência,

Hipocrisia.

 

Engulam tudo aos goles

 

Doença,

Roubo,

Desemprego,

Enchente,

Políticos,

Fome,

Dinheiro.

 

Acreditem na verdade absoluta, “sem cortes”

 

Ódio,

Censura,

Sangue,

Crise,

Ditadura,

Guerra,

Manipulação.

 

E então esqueçam, pois é hora de ver os gols

 

Temos o controle de vocês

Teletelas em sua sala de estar

Aperto apenas um botão:

Sentem,

Parem,

Admirem.

Fiquem agora com a novela das nove.

Retrato da Existência

Sempre vi tudo por trás de uma lente. Cada momento, cada gesto, poderia não acabar, virar arte. Imaginava várias histórias diferentes ao tentar decifrar uma foto qualquer, acreditando que apenas uma imagem seria capaz de resumir uma vida.

Ansiava por encontrar esse momento perfeito em que minha vida se tornaria uma foto. Buscava em parques, na escola, em casa, mas nada parecia certo. Por mais que eu reunisse todas as coisas que me faziam ser “eu”, na hora em que a revelava, no meio de todas aquelas tintas, e luzes, e varais da sala escura, uma parte de mim se perdia.

Eu pensava que minha foto não seria minha. Bom, que não estaria nela, fotografado. Se eu sempre observei, não deveria ficar marcado sendo observado. As pessoas me viam, mas eu não, e minha imagem deveria ter a minha visão.

Naquele dia, saí da sala escura, sem, novamente, me encontrar. Talvez conseguisse achar algo na biblioteca, lembro-me de pensar. Entre as prateleiras, com a câmera pendurada no pescoço, vi-o. Soube que era este o momento. Levantei a lente aos meus olhos enquanto ele levantava a arma. Quem era ele? Não importa, nem mesmo o conhecia. Mas aquela era minha imagem, e aquele instante resumira minha existência.

Gritos

Sentados na frente da TV

Engolindo diversão barata

E notícias manipuladas

Reclamando do governo

Até os 90 minutos começarem

Cegos, surdos, mudos.

Impotentes, é o que pensam

Moldados em uma fila,

Objetos na linha de produção.

 

Então alguém grita.

 

Um grito fraco, com medo

Mais um se junta a ele

Mais alto, ininterrupto

Outros também gritam,

Sabem que não conseguirão todos

Mas a sensação de incômodo está presente, é percebida

Alguns enlouquecem,

Alguns fingem que não é nada.

 

Não há mais tanta gente nos sofás.

 

Voam balas de borracha

Junto com lágrimas forçadas

Não importa

O grito continua ali

Cansaço do mundo

Estou cansada

Cansada de regras

De ter de pensar nos mínimos detalhes para ser entendida

E não ser

De escolher as palavras  que vou colocar no texto

Quem disse que eu não posso mandar o mundo se foder em um poema?

Estou cansada de esperar aprovações

De ter que conseguir sorrisos toda vez que abrir a boca

De ser considerada anormal por não me importar que me chamem de anormal

De ter que escolher, e ser julgada por cada decisão

Estou cansada de não poder sair correndo por aí,

Cantando, dançando, sorrindo e vivendo

De ser impedida de fazer o que quero

E não saber quem me impede

Cansada de assistir a filmes, ler livros,

Sonhar como seria fazer parte desse mundo

E não fazer

De me preocupar com quanto eu vou ou posso gastar

Pois dinheiro é só um papel,

Nós é quem damos valor a ele

Estou cansada desta realidade surreal,

Onde nada e tudo são feitos

Mas que nunca muda

Cansada de fazer planos e promessas

De ter que me preocupar com o amanhã

De me perguntar se isso existe

De escrever sobre isso, sabendo que ninguém vai ler

Absolutamente cansada desta liberdade,

Que não é livre

E mesmo assim nos condena.

Ser e não ser

Eu andava pelas ruas
Solitária, distante
Acenava, mas não me viam
Passavam por cima de mim
E eu, chorava
por não ter mais o que fazer,
por não saber o porquê de me camuflar,
perder a identidade que achava que tinha.
Em um mundo cinza.
Sem razão ou emoção.
Pra que ser pisoteada?
Por quê?
E então, entendi.
Eu não existia.
Eu era apenas ninguém.

Pedaço de loucura

Acho que devo parar de refletir
Sobre essa mera existência em que me encontro
Onde, por mais que eu tente,
Não posso encontrar o dia.
O escuro e as trevas
Passam e voltam
Consumindo tudo ao meu redor
Pedaço por pedaço
Até que não haja escapatória
A não ser juntar-me a sua loucura
Deliciar-me com isso
E sucumbir dante de sua força
Não! Não devo!
Pois é apenas meu pensamento
Que me separa do estado de deplorável insensatez.
Cada crítica, cada revolta, cada golpe dado
É uma nova revelação
De que estou viva.
E viver, é o único pedaço de loucura
Ao qual me atrevo a agarrar.