Teatralidade

Quem nunca fingiu ser outra pessoa? Ou quis imitar um forma de agir, seja por diversão ou para se sair melhor em um momento? O ser humano é teatral por natureza, desde o primeiro choro forçado para conseguir o que queria, ainda bebê. Atuar é necessário para conseguir viver bem, e o improviso é a base da vida.

Nossa vida se resume a uma composição de cenários com atores que se conhecem na hora e trocam a todo instante de lugar com a plateia. As peças vão se alternando e passamos a conhecer vários gêneros e situações estranhas que não conseguiríamos encarar sem teatralidade. Um ator que nunca muda não consegue acompanhar as mudanças bruscas de tema que continuam a acontecer. Para continuar, ele precisa atuar. Parafraseando Darwin, ou você se adapta, ou morre.

Mesmo que nos digam para sempre sermos nós mesmos e nunca mudarmos, milhares de vezes, esses conselhos continuam a ser horríveis. Não que você precise “perder a si mesmo”, mas tem horas em que a atuação não pode ser deixada de lado, assim como quando você não diz à sua chefe que ela está gorda (por mais que esteja) para continuar tendo emprego.

A arte de mentir e, principalmente, de não ser descoberto, também depende infinitamente de atuação. Uma palavra usada de forma errada, ou uma expressão, podem fazer tudo desandar. Todos amamos segredos alheios, então é melhor ser bom nisso.

E então, após entrarmos nesse palco, passando por várias peças improvisadas e figurinos mal desenhados, as luzes vão se acabando e os personagens vão sumindo. Seu teatro acabou. O que nos resta a fazer é torcer pelo final feliz e por aplausos da plateia.

Jornal das Oito

Boa noite

 

Sofrimento,

Morte,

Angústia,

Choro,

Polícia,

Violência,

Hipocrisia.

 

Engulam tudo aos goles

 

Doença,

Roubo,

Desemprego,

Enchente,

Políticos,

Fome,

Dinheiro.

 

Acreditem na verdade absoluta, “sem cortes”

 

Ódio,

Censura,

Sangue,

Crise,

Ditadura,

Guerra,

Manipulação.

 

E então esqueçam, pois é hora de ver os gols

 

Temos o controle de vocês

Teletelas em sua sala de estar

Aperto apenas um botão:

Sentem,

Parem,

Admirem.

Fiquem agora com a novela das nove.

Retrato da Existência

Sempre vi tudo por trás de uma lente. Cada momento, cada gesto, poderia não acabar, virar arte. Imaginava várias histórias diferentes ao tentar decifrar uma foto qualquer, acreditando que apenas uma imagem seria capaz de resumir uma vida.

Ansiava por encontrar esse momento perfeito em que minha vida se tornaria uma foto. Buscava em parques, na escola, em casa, mas nada parecia certo. Por mais que eu reunisse todas as coisas que me faziam ser “eu”, na hora em que a revelava, no meio de todas aquelas tintas, e luzes, e varais da sala escura, uma parte de mim se perdia.

Eu pensava que minha foto não seria minha. Bom, que não estaria nela, fotografado. Se eu sempre observei, não deveria ficar marcado sendo observado. As pessoas me viam, mas eu não, e minha imagem deveria ter a minha visão.

Naquele dia, saí da sala escura, sem, novamente, me encontrar. Talvez conseguisse achar algo na biblioteca, lembro-me de pensar. Entre as prateleiras, com a câmera pendurada no pescoço, vi-o. Soube que era este o momento. Levantei a lente aos meus olhos enquanto ele levantava a arma. Quem era ele? Não importa, nem mesmo o conhecia. Mas aquela era minha imagem, e aquele instante resumira minha existência.

Gritos

Sentados na frente da TV

Engolindo diversão barata

E notícias manipuladas

Reclamando do governo

Até os 90 minutos começarem

Cegos, surdos, mudos.

Impotentes, é o que pensam

Moldados em uma fila,

Objetos na linha de produção.

 

Então alguém grita.

 

Um grito fraco, com medo

Mais um se junta a ele

Mais alto, ininterrupto

Outros também gritam,

Sabem que não conseguirão todos

Mas a sensação de incômodo está presente, é percebida

Alguns enlouquecem,

Alguns fingem que não é nada.

 

Não há mais tanta gente nos sofás.

 

Voam balas de borracha

Junto com lágrimas forçadas

Não importa

O grito continua ali

Cansaço do mundo

Estou cansada

Cansada de regras

De ter de pensar nos mínimos detalhes para ser entendida

E não ser

De escolher as palavras  que vou colocar no texto

Quem disse que eu não posso mandar o mundo se foder em um poema?

Estou cansada de esperar aprovações

De ter que conseguir sorrisos toda vez que abrir a boca

De ser considerada anormal por não me importar que me chamem de anormal

De ter que escolher, e ser julgada por cada decisão

Estou cansada de não poder sair correndo por aí,

Cantando, dançando, sorrindo e vivendo

De ser impedida de fazer o que quero

E não saber quem me impede

Cansada de assistir a filmes, ler livros,

Sonhar como seria fazer parte desse mundo

E não fazer

De me preocupar com quanto eu vou ou posso gastar

Pois dinheiro é só um papel,

Nós é quem damos valor a ele

Estou cansada desta realidade surreal,

Onde nada e tudo são feitos

Mas que nunca muda

Cansada de fazer planos e promessas

De ter que me preocupar com o amanhã

De me perguntar se isso existe

De escrever sobre isso, sabendo que ninguém vai ler

Absolutamente cansada desta liberdade,

Que não é livre

E mesmo assim nos condena.