Boneca de pano

Andava por entre as ruínas do que antes fora belo. Pequenos passos, lentos. Não havia porque correr. Também não havia onde ir.

Tropeçando por entre as pedras e a areia a seus pés. Sua mãe a dissera para não se sujar. Mas o vestido leve e branco há muito tornara-se cinza. Também estava sozinha. Apenas ela e a boneca de pano, sua única recordação do antes.

Encontrou um pequeno lugar no meio dos destroços de um prédio. Dormiu. A boneca sempre agarrada a ela. Não era bonita, porém carregava a memória de sua geração. Ambas o faziam. Mesmo no intenso escuro que agora se propagava, aquela luz futura ainda existia.

O sol não nasceu. De novo. Sem vento. Tudo parado. Passou pelos mesmo túneis do dia anterior. Sujou-se um pouco mais. A boneca não. Sempre impecável. Chegou ao poço. Cheio de lama ao redor.

Trouxe o balde consigo. Jogou-o de volta para dentro. Pouca água. Suficiente. Girou a manivela enferrujada. O vento soprou, pela primeira vez. A boneca abriu os braços. Voava para dentro do poço. Logo em seguida, a menina. Sempre juntas. Agarradas uma a outra. No poço úmido e escuro, a luz se apagou.

Silêncio

Não havia luz, estava tudo escuro. “É durante a noite que as coisas acontecem”, lembrava-se de ter ouvido aquela frase, mas ainda assim, nada acontecia. Às vezes pensava ouvir gritos, talvez os seus próprios. Não se lembrava da última vez que gritara, aquilo era contra o código de moral do minúsculo apartamento em que vivia. Algumas paredes cinza a cercava, porém no escuro era quase impossível vê-las. Ainda assim, sentia-as, como se ficassem cada vez menor, e a espremessem.

Fazia muito tempo desde que ficara sozinha e sem nada para fazer. Vivia para o trabalho, um pequeno cargo em uma empresa qualquer. Dizia que não era nada mal para alguém que tinha acabado de entrar no mercado de trabalho, mas realmente odiava tudo aquilo. O chefe, o serviço, as recepcionistas fazendo fofoca sobre alguém sem importância. Tudo. Sentia-se sufocada com aquele ar pesado e os milhares de formulários inúteis que via todo dia. A única razão de continuar era para manter seu american way of life. Seu apartamento, seu celular novo, sua televisão.

Quando não estava trabalhando, fugia daquilo vendo horas de televisão e ouvindo as músicas que passavam nas rádios.Quase sempre deixava de prestar atenção àquilo tudo, mas ainda os deixava ligados. O silêncio a incomodava. Silêncio aquele que agora a cercava por todos os lados.

Torcia para que os gritos que pensava ouvir continuassem, mais e mais. Arranhava-se. Rangia os dentes numa mísera tentativa de acabar com os pensamentos sobre si. Sabia que eles eram verdadeiros. Odiava profundamente o instante em que o síndico tinha vindo avisá-la sobre a falta de luz. Apenas duas horas, havia dito. Tempo suficiente para perceber que odiava mais a si mesma do que ao próprio síndico, do que qualquer um que já havia conhecido.

Lembrava-se de sua infância, quando havia prometido não se vender para as terríveis companhias que faziam de seus trabalhadores verdadeiros escravos. Bom, agora mentia para si mesma que era necessário vender-se um pouco para depois se ver livre. Sabia que isso nunca aconteceria. Tinha entrado no mercado, e o máximo que poderia fazer era trocar de dono. O medo de ser a responsável por todas as suas ações a impedia de ser livre. Assim como todos que diziam que aquilo era loucura, e que seu destino seria tão horrível quanto o de vilões de contos de fadas.

O escuro e o silêncio pareciam aumentar. O desespero crescia cada vez mais, juntamente com os segundos no relógio. Sem som. Olhou para as horas. Mais uma hora. Não aguentava mais aquilo, a vergonha de si mesma, o sentimento de ócio, a falta de um barulho qualquer. Nem as batidas do seu coração faziam algum som. Talvez não existissem mais. Há muito tempo que não as ouvia. De repente aquilo se tornou demais para ela. Foi à cozinha, pegou pratos e copos. Todos ao chão. Jogou a televisão também. Os celulares. Tudo. A cada pedaço de vidro se estraçalhando no chão se sentia um pouco melhor. Havia som. Uma sinfonia de destroços ao seu redor. Cantava e dançava no ritmo dos cacos. Cortava-se às vezes, mas aquilo só a fazia mais feliz. O tempo agora era belo, passava e corria. A luz voltou. Ela continuou ali. Ensanguentada no meio da pilha de destroços do que construíra na sua vida. Finalmente humana. Levemente, ouvia de novo as batidas do seu coração.

Retrato da Existência

Sempre vi tudo por trás de uma lente. Cada momento, cada gesto, poderia não acabar, virar arte. Imaginava várias histórias diferentes ao tentar decifrar uma foto qualquer, acreditando que apenas uma imagem seria capaz de resumir uma vida.

Ansiava por encontrar esse momento perfeito em que minha vida se tornaria uma foto. Buscava em parques, na escola, em casa, mas nada parecia certo. Por mais que eu reunisse todas as coisas que me faziam ser “eu”, na hora em que a revelava, no meio de todas aquelas tintas, e luzes, e varais da sala escura, uma parte de mim se perdia.

Eu pensava que minha foto não seria minha. Bom, que não estaria nela, fotografado. Se eu sempre observei, não deveria ficar marcado sendo observado. As pessoas me viam, mas eu não, e minha imagem deveria ter a minha visão.

Naquele dia, saí da sala escura, sem, novamente, me encontrar. Talvez conseguisse achar algo na biblioteca, lembro-me de pensar. Entre as prateleiras, com a câmera pendurada no pescoço, vi-o. Soube que era este o momento. Levantei a lente aos meus olhos enquanto ele levantava a arma. Quem era ele? Não importa, nem mesmo o conhecia. Mas aquela era minha imagem, e aquele instante resumira minha existência.

Folhas em branco

Olhou para o papel em branco. Nada. Rabiscou algumas palavras, mas elas não diziam o que queria. Na verdade, ela mesma não sabia o que queria escrever. Sentia um desejo profundo de colocar algo na folha, algo importante, que a fizesse sentir como se tivesse cumprido uma missão. Mas nada vinha.

Levantou-se, tomou um copo d’água. Olhava-o buscando ver as letras que tanto queria encontrar. Só viu ondas, sem mar, ou vida, ou amores. Uma brisa fria soprou da janela. Fechou-a. Voltou à cadeira, desta vez pegou o computador, talvez ali conseguisse ter alguma inspiração.

A tela a encarava, quase tanto quanto ela encarava a tela. Uma observava a outra, mastigando seus pedaços, engolindo cada um deles, sem fazer nenhum movimento. O teto talvez fosse mais interessante, e passou a observá-lo. Não era. O tédio continuava prendendo qualquer sinal de vida.

Dormiu, acordou, dormiu de novo. “Não posso escrever, sou inútil”, pensou. “Preciso de vida, não de teatro”. Então caminhou. Sem parar, procurando encontrar o que nunca teve ou viu. Apenas papel, caneta, e um destino incerto.

Na escuridão do dia

Olhou para o céu e viu a lua, pálida e fria. Poucas estrelas a acompanhavam, e estava tudo muito escuro naquela noite. Perguntou-se quando veria o sol de novo. Sabia que, há muito tempo atrás, o sol vinha sempre depois da lua, e os dois se intercalavam. Mas agora, não havia mais sol. Já tinha mais de 5 anos desde que o sol se fora. Pelo menos era o que pensava, pois não havia como medir com precisão.

A princípio, ele começou a vir cada vez mais tarde, demorando várias horas para aparecer. As pessoas, que tinham coisas melhores a fazer do que prestar atenção ao sol, não se importavam muito, pensavam que era uma coisa normal ou culpa de um erro de alguém, que se resolveria logo. Continuaram com suas vidas, até que um dia, o sol não apareceu. Muitos pensaram ser um eclipse longo demais, ou um fenômeno comum. Mas esse “fenômeno comum” passou a ser cada vez mais frequente, e as coisas começaram a parar. Nada mais funcionava direito, não havia sol. Em pouco tempo, ele desapareceu de vez, e, com ele, a sociedade tão bem organizada sobre seus computadores, celulares, e tecnologia de ponta. Tudo voltara ao início, e ninguém sabia como tudo começava.

Continuava a olhar para o céu, horas e horas por dia, esperando que um raio de luz surgisse no meio de toda a escuridão. Muitos de seus amigos, da época antiga, haviam enlouquecido, com medo de enfrentar aquilo que sempre esteve na sua frente. Todos viviam no escuro, mesmo antes do sol sumir, mas nunca perceberam isso. E perceber isso os deixava loucos, poucos ainda resistiam, ainda tinham um resquício de luz, mas que se apagaria logo. Esperava atenciosamente, todos os dias, surgir uma luz forte o bastante para iluminá-la e a outros, sabia que nesse dia, o sol voltaria a brilhar.