Silêncio

Não havia luz, estava tudo escuro. “É durante a noite que as coisas acontecem”, lembrava-se de ter ouvido aquela frase, mas ainda assim, nada acontecia. Às vezes pensava ouvir gritos, talvez os seus próprios. Não se lembrava da última vez que gritara, aquilo era contra o código de moral do minúsculo apartamento em que vivia. Algumas paredes cinza a cercava, porém no escuro era quase impossível vê-las. Ainda assim, sentia-as, como se ficassem cada vez menor, e a espremessem.

Fazia muito tempo desde que ficara sozinha e sem nada para fazer. Vivia para o trabalho, um pequeno cargo em uma empresa qualquer. Dizia que não era nada mal para alguém que tinha acabado de entrar no mercado de trabalho, mas realmente odiava tudo aquilo. O chefe, o serviço, as recepcionistas fazendo fofoca sobre alguém sem importância. Tudo. Sentia-se sufocada com aquele ar pesado e os milhares de formulários inúteis que via todo dia. A única razão de continuar era para manter seu american way of life. Seu apartamento, seu celular novo, sua televisão.

Quando não estava trabalhando, fugia daquilo vendo horas de televisão e ouvindo as músicas que passavam nas rádios.Quase sempre deixava de prestar atenção àquilo tudo, mas ainda os deixava ligados. O silêncio a incomodava. Silêncio aquele que agora a cercava por todos os lados.

Torcia para que os gritos que pensava ouvir continuassem, mais e mais. Arranhava-se. Rangia os dentes numa mísera tentativa de acabar com os pensamentos sobre si. Sabia que eles eram verdadeiros. Odiava profundamente o instante em que o síndico tinha vindo avisá-la sobre a falta de luz. Apenas duas horas, havia dito. Tempo suficiente para perceber que odiava mais a si mesma do que ao próprio síndico, do que qualquer um que já havia conhecido.

Lembrava-se de sua infância, quando havia prometido não se vender para as terríveis companhias que faziam de seus trabalhadores verdadeiros escravos. Bom, agora mentia para si mesma que era necessário vender-se um pouco para depois se ver livre. Sabia que isso nunca aconteceria. Tinha entrado no mercado, e o máximo que poderia fazer era trocar de dono. O medo de ser a responsável por todas as suas ações a impedia de ser livre. Assim como todos que diziam que aquilo era loucura, e que seu destino seria tão horrível quanto o de vilões de contos de fadas.

O escuro e o silêncio pareciam aumentar. O desespero crescia cada vez mais, juntamente com os segundos no relógio. Sem som. Olhou para as horas. Mais uma hora. Não aguentava mais aquilo, a vergonha de si mesma, o sentimento de ócio, a falta de um barulho qualquer. Nem as batidas do seu coração faziam algum som. Talvez não existissem mais. Há muito tempo que não as ouvia. De repente aquilo se tornou demais para ela. Foi à cozinha, pegou pratos e copos. Todos ao chão. Jogou a televisão também. Os celulares. Tudo. A cada pedaço de vidro se estraçalhando no chão se sentia um pouco melhor. Havia som. Uma sinfonia de destroços ao seu redor. Cantava e dançava no ritmo dos cacos. Cortava-se às vezes, mas aquilo só a fazia mais feliz. O tempo agora era belo, passava e corria. A luz voltou. Ela continuou ali. Ensanguentada no meio da pilha de destroços do que construíra na sua vida. Finalmente humana. Levemente, ouvia de novo as batidas do seu coração.